domingo, 22 de novembro de 2015

20 e tantos anos

Do lado de fora tudo era cinza. Prédios de concreto e pessoas de papel caminhavam apáticas pelas ruas largas do centro da cidade, todas muito ocupadas em seguir a linearidade das suas vidas. Ele olhava tudo de cima, com um sorriso bonito e triste no rosto. Triste porque sabia a infinidade de coisas que existiam para serem desbravadas e via as pessoas se contentando com tão pouco. Bonito porque guardava ali, naquela meia lua, uma vontade imensa de viver. Vontade intensa de se jogar de cabeça e fazer simplesmente aquilo que lhe fizesse feliz. 

Tinha um coração de menino batendo no peito de quem já sabia o peso das responsabilidades, coisa que sempre lhe rendia alguns momentos de lamento. Coisa cruel esse tal de tempo; não pede licença pra passar. Sentia-se amarrado pelas obrigações, mas gente jovem nunca perde a esperança, ele muito menos. Saiu da janela e voltou o olhar para o espelho na parede da sala. O menino era alto, tinha uns fios brancos em alguns cantos e rugas nos olhos de tanto sorrir. Idade é só um número para quem guarda o mundo dentro de si, para quem sente a liberdade correr pelo corpo, para quem quer sempre fazer mais e melhor. 

Do lado de fora tudo era cinza. Do lado de dentro não poderia ser mais colorido.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Não existe amor em SP

Eu conseguia sentir tudo. O cheiro de chuva que vinha de fora, juntamente com o som calmo e sereno das gotas no chão. As batidas aceleradas e o sangue pulsando pelas veias; nas têmporas, nos ouvidos, no pescoço, no peito, nas pontas dos dedos das mãos e pés. Eu podia sentir cada milímetro que existia entre nós, cada um deles rezando para que fossem extintos. Contei mentalmente quantos anos se arrastaram até que você tivesse se tornado uma fotografia amarelada na minha memória, como se isso fizesse alguma diferença. Você estava ali, com cores bem vívidas e o sorriso bobo no rosto. Estendi o indicador e toquei seu braço, averigando se aquilo era real. Parecia concreto o suficiente. Um dedo se tornou uma mão, que não demorou a virar um abraço com oito anos de sentimento acumulado. Senti uma lágrima escorrer pelo rosto e sorri em paz comigo mesma. O momento finalmente estava ali.

Abri os olhos. Dois de novembro. Respirei fundo e encarei o teto branco, deixando minha mente vagar pela noite passada. "Mais uma frustração pra colocar na conta", pensei. Senti a cama grande demais e meu corpo encolher contra parede, tentando se desfazer do abraço imaginário que jazia ali, tão real. Naquela manhã não existiu amor em SP, nem em BH, mas nascia um novo "e se". Sorri, levantei da cama e reli todas a promessas das madrugada. Deixa ser como será.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Frio na barriga


Paixão;

Vem do latim passio, cuja tradução seria algo como “sofrimento, ato de suportar”, de pati, “sofrer, aguentar”, do grego pathe, “sentir ”.

Fisicamente falando, estar apaixonado nada mais é do que uma série de reações físico-químicas no seu corpo. Hormônios são liberados na sua corrente sanguínea e tá aí a euforia, o frio na barriga, os olhos brilhando. Mentalmente falando? Bem, eu não sei por onde começar. Antigamente as pessoas diziam estar apaixonadas quando sentiam dor. Acho que isso diz muito sobre o quanto somos naturalmente masoquistas.

Estar apaixonado é criar um grande botão vermelho de autodestruição e entregar de mão beijada para alguém. É ouvir um "Oi, tá tudo bem?" e sentir todo o corpo responder "Agora tá". A gente perde a cabeça por muita coisa, mas tem memória de sobra pra lembrar cada detalhezinho; rosto, voz, música favorita, time, cheiro. Paixão é uma grande, deliciosa e assustadora montanha-russa e apesar da descida enorme, do carrinho instável, da falta de controle, fechamos os olhos e nos deixamos levar completamente. Depois que a gente entra, só nos resta esperar o brinquedo parar. Mas a esperança é que ele nunca pare, né?

Eu sinto muito por quem tem medo de alturas.


sábado, 10 de outubro de 2015

A fruta da estação


Amora amava o amor. Em seu jeito mais puro e genuíno. 

Era apaixonada pelo cuidado, pela doçura e pelo se importar. Sem toda aquele drama e baboseira dos romances shakesperianos; para ela o importante era querer bem. Que sorte a minha de ter conhecido alguém tão delicada e dedicada. Menina-moça-mulher que sempre dava tudo de si no que fazia e, justamente por isso, fazia tudo de um jeito mais especial. Não existia quem não se sentisse bem perto de Amora, porque ela era uma dessas raríssimas pessoas no mundo que tinham luz própria. Todos se tornavam girassóis quando ela passava, acompanhando o brilho e o calor característico da fruta da estação. Era fácil sentir-se uma boa pessoa perto de alguém tão motivado e de bem com a vida. Se ela era assim sempre? Claro que não, mas isso lhe tornava humana e ainda mais incrível. Quantos de nós conseguem se projetar para o outro até nos seus piores dias? 

Amora era vermelho-rosa-cor-de-eu-te-amo, porque era isso que eu sentia vontade de falar sempre que a via.


Sem julgamentos


Pedro tinha o coração nos pés. Caminhava e deslizava pelo tablado de madeira com aquela certeza que só ele tinha. Dançava de olhos fechados e cada respiração acompanhava aquele caso de amor com a música que tocava. Volta e meia, no meio de meias-voltas, eu vislumbrava um sorriso bobo de gente apaixonada e eu ria, contagiada por tudo aquilo. Eu mal conhecia Pedro, mas eu confiava. Confiava ao ponto de fechar os olhos e deixar que ele me mostrasse o que fazer e, cá entre nós, eu sempre preferi fazer as coisas sozinha. Estar ali, rindo no meio de vários passos enrolados e atrapalhados me fazia sentir bem. Aquecia o coração finalmente encontrar alguém assim, leve. Depois de tanto tempo seguindo uma linha reta e comum, ele era porta aberta para altos e baixos. Pensei ali que nada que eu falasse talvez conseguisse transmitir o tanto que eu estava feliz por ter conhecido ele e todos os outros que vieram junto, por isso me contentei em elogiar.

A forma que ele dançava, o carinho que ele tinha com os amigos, a paciência em lidar com alguém irritantemente feliz e que fala pelos cotovelos (mas com conteúdo)... Eu, que sempre fui tão apaixonada por estrelas, talvez tivesse encontrado uma das mais brilhantes, bem ali na minha frente. Se ele sabia? Provavelmente não. Mas era assim mesmo; as pessoas mais bonitas eram aquelas que não tinham a mínima noção disso. 


domingo, 27 de setembro de 2015

A vida, o universo e tudo mais


Eu lembro claramente daquela primeira conversa sobre a vida que tive com meu pai. Aquela velha história da roda gigante; tem momentos que você sobe e tem momentos que você desce. Tão intrínseco isso ficou na minha mente que, até pouco tempo, eu não contestava esse fato. O problema dessa teoria é matemático, afinal, a roda gigante gira num período constante, num intervalo de tempo linear e uniforme. É impossível atrelar algo tão fluido e intempestivo quanto a vida, a algo tão perfeito e imutável. Na minha experiência própria (de quem tem lua em escorpião), cansei de acordar triste e terminar o dia de bem com o mundo, ou o contrário. Passei um longo período estando no topo, apreciando a vista, quando um fato pequenininho fez tudo mudar. 

Atenção: se você tem algum problema com crenças, talvez seja melhor você parar de ler porque estamos prestes a entrar em algumas questões existenciais aqui. 

Eu, pessoalmente, acredito que existe algo que rege o universo. Não entrando no mérito de destino ou algo do tipo, mas algumas vezes eu também duvido da existência da palavra "coincidência". Veja bem, cada homem produz cerca de 200 milhões de espermatozóides numa relação sexual, ao passo que uma mulher possui aproximadamente 500 mil óvulos ao longo da vida. Existem 7 bilhões de pessoas no mundo e, num dado momento, seus pais se conheceram, um espermatozóide e óvulo específicos se juntaram e deram origem a você, um ser com características únicas. O quão improvável é isso, estatísticamente falando? Podia ser outra pessoa, mas é você.

Dica: pesquisa um pouco sobre teoria do caos e movimento browniano. É de endoidar a cabeça, sério.

Astrologicamente (lembra das crenças?), no momento em que você nasce, toda a energia dos planetas alinhados naquela hora exata, de acordo com o lugar do nascimento, se mescla com a sua própria energia através do princípio da sincronicidade e voilà, temos toda uma cadeia de dados planetários que te dão um poder de autoconhecimento inestimável. É científicamente comprovado que a lua move as marés e que se ela mudasse um pouquinho só o seu movimento, todos morreríamos com as catástrofes. Por qual motivo isso não poderia ser válido para pessoas também? 

Já parou para pensar em como todos estamos ligados em rede? Que, mesmo sem sabermos, podemos afetar a vida de alguém? Que tal imaginar que aquele cara na lanchonete ouviu sua piada e passou para os próprios amigos? Ou que alguém ouviu você contar uma história no ônibus e se inspirou completamente nela para fazer algo? Talvez você tenha cruzado com alguém na rua que te achou a pessoa mais linda do mundo por alguns segundos e comentou isso nas próprias redes sociais. Somos estrelas colidindo umas com as outras todos os dias.

Eu não sei porque senti a necessidade de escrever sobre isso, mas me assusta ver pessoas com a mente tão fechada ao ponto de ignorar a quantidade infinita de interrogações que existem nesse universo. Quero dizer, é bem egocêntrico da nossa parte pensar que estamos sozinhos no meio da via láctea, que somos absurdamente desenvolvidos e que nossa vida se baseia basicamente em nascer, viver (sendo bem sucedido, óbvio), se reproduzir e morrer. A vida é muito mais do que só uma roda gigante. A vida pra mim é quase um buraco negro que todo dia me transporta pra um canto diferente da minha mente. Talvez valha a pena parar um pouquinho, pensar sobre essas coisas e se quiser conversar sobre, é só chamar.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"[...] nem brisa nem a poesia, nem a lua que surgia me fez esquecer você."


Eu te vi do outro lado do picadeiro. Foi o bastante para sentir tudo dentro de mim desmoronar. "E lá vamos nós de novo". A conhecida sensação de descontrole me invadiu, como sempre. Senti ódio de mim mesma, ódio do meu coração que se encantava com um sorriso torto distante. Ele não seria o primeiro (e muito menos o último) a invadir meus pensamentos e depois ir embora. Era sufocante a sensação de imaginar pequenas possibilidades. A ideia do nós sempre chegava violentamente, destruindo tudo o que tocava, e eu me afogava. Engolia paixão, respirava esperança, engasgava com a impossibilidade, tossia tristeza. Uma vez, duas vezes, mais uma vez. Eu me conhecia bem o suficiente para prever tudo isso. No momento em que eu te vi, eu soube. Seu nome, como seria nosso primeiro beijo, os filmes que veríamos juntos, as tardes na Praça da Liberdade. Eu sabia mais ainda o quanto pensar nisso me machucaria, afinal, eu era formada e graduada em dez tipos diferentes de autossabotagem. Meus pensamentos eram embalados pelo ritmo lento e compassado, a letra eu conhecia de cor. Sorri com escárnio te vendo dançar, rindo de mim mesma por um dia ter dito que amava amar. O amor sempre foi roleta russa, e pra quem já tinha sido baleada tantas vezes, eu já sabia exatamente a hora do tiro.

Levantei e fui embora, deixando para trás você, o forró e o dedo no gatilho.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Amarelo


O sol pintava o céu no final da tarde quando Amanda saiu de casa. Fazia o frio característico do inverno na sua cidadezinha e ela não podia perder a chance de aquecer o corpo. Sentou-se na grama e sentiu os últimos raios luminosos daquele dia tocarem seu rosto. Adorava a sensação de ter a pele quente, ao passo que seus olhos inundavam-se com a visão das nuvens multicoloridas; o jeito que o sol sumindo no horizonte levava com ele todos os seus pensamentos ruins. 

Não era uma pessoa triste. Longe disso. Amanda transpirava alegria e disposição, não media esforços para ajudar alguém e não acreditava em "não consigo". Era o tipo de pessoa que colocava amor em tudo que tocava. Cozinhava, escrevia, falava, trabalhava, cuidava... Tudo com o coração. Uma pena que esse tenha se danificado um pouquinho na viagem da vida. Uma pena que alguém tão brilhante precisasse lidar com as dificuldades do fim. 

Apesar disso, ela nunca reclamava. Escondia suas cicatrizes nas mangas das suas muitas blusas de frio e vestia seu melhor sorriso todos os dias. Ria, fazia, acontecia e o mundo parecia girar ao seu redor; quase como se fôssemos girassóis e ela mesma tivesse roubado o brilho do astro para si. Mas era só chegar em casa e tirar as camadas de roupa que as memórias voltavam. Despia-se do jeito desastradamente lindo, da felicidade, da fala corrida e enérgica. Restava o cansaço do dia e do coração.

Porém Amanda nunca desistia. Sabia que o tempo curava tudo.

Amanda era linda. Em todas a sua perfeita imperfeição. Em toda a sua força. E às 17h30, Amanda era uma pessoa mais feliz. 


domingo, 21 de junho de 2015

E ponto.


É da natureza humana evitar os finais. O fim precede o vazio. Aquele sentimento esquisito quando você termina um livro ou uma série muito boa. Quando você termina um trabalho que passou dias fazendo. Quando você vê alguém que sempre na sua vida partir. Tentamos tanto postergar as coisas que nos machucamos por causa disso. É difícil encarar que muitas vezes é melhor ficarmos com nós mesmos, em vez de nos quebramos em vários pedacinhos para nos encaixarmos em algo. Leva um tempo até nos acostumarmos e, nos casos mais extremos, esse tempo nunca chega. 

É particularmente difícil para mim, lidar com essa efemeridade da vida. Sou aquele tipo de pessoa que se agarra com toda força nos momentos bons, na esperança de que eles aceitem mais uma xícara de chá antes de se retirarem. A imprevisibilidade da mudança é assustadora. Nos últimos tempos eu tenho evitado ficar sozinha comigo mesma, porque quase sempre me pego encarando as paredes e pensando nos "se". Se eu tivesse feito isso, aquilo, aquilo outro. Tenho procurado me manter constantemente bêbada. Embriagada de certeza. Inebriada de coragem. Pra ver se consigo espantar o medo de ficar sozinha. Pra ver se consigo encarar essa falta de respostas.

Estamos destinados a ficarmos sempre sozinhos? Qual é o sentindo de viver? Se tudo é passageiro, onde é que fica o ponto final?

domingo, 31 de maio de 2015

Código Morse

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Ali no alto ela conseguia respirar. Inalava o vento frio com tanto prazer que nem se importava com o ardor que ele provocava nos pulmões. Cruzou os braços sobre o peito e olhou para baixo. Quinze andares. Algumas formigas caminhavam rapidamente pela fina rua, apressadas para chegar em algum lugar. Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas grossas e um riso debochado escapou da boca cor de uva. As pessoas eram treinadas para continuar caminhando, por mais que o destino final fosse incerto. Ela mesma se considerava uma andarilha nata; daquelas que sempre tem uma mochila nas costas e os pés prontos para pegar o próximo desvio. A vida previsível era necessária, mas nada era mais emocionante do que as bifurcações. 

Seu coração angustiado batia acelerado no peito, como um passáro engaiolado procurando a saída. O que estaria lhe esperando? Milhões de pessoas naquela pequena cidade grande, onde cada esquina virada criava incontáveis possibilidades. Abriu os braços o máximo que conseguia e ficou na ponta dos pés. Fechou os olhos e ouviu a canção do silêncio. Sentia frio na nuca exposta. Sentia o corpo lento, como se estivesse imerso em água. Podia sentir o palpitar do sangue fluindo nas pontas dos dedos. Era um sinal. Estava viva. Isso era o que importava. 

Abriu os olhos, voltando para a realidade e desceu do parapeito. Deu uma última olhada no horizonte antes de descer as escadas de incêndio. As luzes da cidade grande piscavam em código morse. "Seja livre", elas diziam. "O mundo é muito pequeno pra sua vontade de viver".

segunda-feira, 25 de maio de 2015

No silêncio da madrugada

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As luzes da cidade já começavam a se apagar quando Clara saiu do ônibus. Os cabelos lisos e pesados esvoaçavam com o vento frio, deixando o rosto quase infantil à mostra. Quase porque havia algo naquele olhar. Olhar de quem sabia o que queria, de quem carregava muita coisa no coração. Os braços pequenos cobriam o corpo enquanto andava, se escondendo do frio e e se reservando do mundo que lhe rodeava. Talvez se andasse de braços abertos, as pessoas lhe dessem mais crédito, lhe levassem à sério. Mas a que preço? Avistou o grupo de amigos reúnidos e respirou fundo, se aprontando para as mesmas exclamações de sempre. "Nossa, Clara! Não sabia que você era assim...", a frase já estava carimbada por todo o seu corpo, como folhas de um passaporte. Seu destino era sempre o mesmo; uma viagem para o fundo da sua mente, tentando entender o porquê da sua imagem ter se construído de forma tão rasa. O sorriso nos lábios pintados de roxo mascarava a falsidade daquilo tudo. Falsos julgamentos que Clara engolia sem dizer muita coisa. Ouviu silenciosamente as conversas, tentando absorver tudo o que conseguia, mas se pronunciando de forma muito pontual. Se poupava dos comentários chatos sobre sua ironia desmedida, suas roupas curtas, seu batom escuro... Era até divertido rir consigo mesma daquelas reações, mas sentia falta de alguém que de fato lhe enxergasse. Seus pés formigavam enquanto esperava do lado de fora. Seu coração ansiava pelo que existia atrás daquela porta dupla: Um mundo que era só seu, pronto para ser dançado. A música alta veio como entorpecente, daqueles que batiam tão forte que faziam esquecer até o próprio nome. Ela bebia a batida e inalava o ritmo, sentindo todas as suas amarras se soltarem, uma por uma. Não existia opiniões alheias; não existia fofura e bom senso; não existia a falsidade. Ali só existia Clara, na sua forma mais pura. Uma droga a ser consumida sem nenhuma moderação.

domingo, 24 de maio de 2015

Sobre o Mar que existe entre esse Elo.


Eu nem vi, Alice. Quando você chegou de mansinho e fez da minha vida um ponto de luz e caos. Com seus mil sentimentos não resolvidos disfarçados de egocentrismos. Com suas piadas negras e suas risadas fora de hora. Com seu gosto musical no mínimo diferente e sua frustração por não saber cantar. Com sua vontade de ser útil. Com sua máscara de ser fútil. Com seu jeito sutil de ser ninguém mais do que você mesma.

Eu nem vi, Alice. Quando você simplesmente parou de ser acaso e se tornou rotina. Quando você deixou de ser sozinha e passou a ser preocupação. Quando você deixou de ser você e se tornou eu. Quando você deixou de ser eu e se tornou eles. 

Eu nem vi, Alice. O quanto seu cabelo cresceu e suas barreiras diminuíram. O quanto você ficou mais bonita aos olhos dos outros. O quanto eu me assustei com a rapidez das coisas. O quanto eu me deixei passear por outros cantos. O quanto você cresceu nesse meio tempo. O quanto você se tornou aventura. O quanto eu virei monotonia.

Nem as estrelas cadentes e os signos do zodíaco poderiam prever isso, então eu nem vi, Alice. 
Eu nem vi Alice. Eu via Alice. 

sábado, 16 de maio de 2015

TOC: Te Observo com Carinho

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O som das chaves sendo colocadas na mesa quebrou o silêncio do apartamento. Já passava das oito mas aquilo era considerado cedo para ela. Ouvi o som agudo dos tênis no assoalho e fiz o trajeto até o quarto do lado mentalmente. Já tinha visto aquela cena tantas vezes que não precisava estar lá para saber que ela estava colocando a bolsa na cadeira de sempre, tinha passado a mão pela roupa de cama para tirar qualquer amassado sobrevivente e pendurado o moletom impecavelmente branco no cabideiro. As chaves estavam no criado mudo perto da porta, do lado dos controles da televisão e da sky, nessa ordem. Os bancos da mesa estavam todos perfeitamente alinhados e os quadros na parede marrom desconheciam o que era estarem tortos. O barulho de água caindo denunciava que ela já tinha entrado no banho e era minha deixa para sair do meu canto. 

Caminhei silenciosamente até a cozinha e, enquanto minhas mãos trabalhavam, eu pensava no tanto que aquele lugar era cheio dela. Os livros na estante, organizados por escala de cor, denunciavam todo o seu amor por design. O quadrinho negro na porta da geladeira tinha uma checklist perfeitamente desenhada do que faltava comprar. O capacho da porta dizia "enjoy" e o resto da casa completava educamente, "please". Doses iguais de organização, aconchego e estilo. O conhecido arranhar da vitrola no vinil me despertou dos devaneios e segui de volta para o corredor. 

A porta estava aberta, como se soubesse que eu chegaria. Parei na ali, sem falar nada e a observei, compenetrada com alguma coisa na tela do notebook. Ela costumava usar fones de ouvido mas desde que tínhamos achado aquela vitrola no centro, preferia tirar poeira de alguns discos antigos que comprava eventualmente. Talvez ela só estivesse fingindo não me ver ali, talvez estivesse ocupada demais para me falar qualquer coisa; não me importava. Entrei calmamente, coloquei a caneca de chocolate quente e o prato com um sanduíche na mesa, dando-lhe um beijo na cabeça. 

As olheiras lhe davam um aspecto abatido, cutucando meu instinto de cuidado, porém eu sabia que aquilo era só reflexo de todo o seu esforço. Ela era daquelas pessoas que davam o melhor de si sempre, perfeccionista até onde não podia mais, extramente metódica... Para muita gente, defeitos. Aos meus olhos, qualidades. Passei as mãos pelos cabelos curtos uma última vez e virei as costas. Ela não era de muitas palavras, quase nunca falava sobre si. Sorte dela que eu sempre observei tudo com muita atenção. Eu não conhecia nem um terço daquela mente brilhante, mas sabia muito mais do que ela imaginava. Que continuasse assim.

sábado, 9 de maio de 2015

180

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Abriu os olhos com certo esforço. A pouca luminosidade no quarto lhe agradava; Amenizava o ardor febril das vistas. A garganta lhe machucava até a alma, se é que havia resquício de uma confinada naquele corpo. Moveu-se levemente, fazendo menção de levantar e sentiu os reflexos da noite anterior. A dor veio à tona sem ter dó nem pierdade, percorrendo seu tronco e irradiando pelos membros. Sua cabeça latejava, completando o quadro deplorável em que se encontrava. Não sabia como tinha conseguido chegar em casa, mas agradeceu silenciosamente por ter acordado na própria cama. Lutou contra sua própria vontade de permanecer imóvel e se levantou. Precisava examinar os estragos. O espelho mostrava uma figura alta e esguia, até bonita se não fossem os hamatomas nos braços e pernas. A camisa escondia uma mancha enorme nas costelas, que parecia um bom motivo para uma ida ao hospital. O rosto antes belo, estava encovado. Os olhos vazios eram emoldurados pelas olheiras fundas. Se não fosse pelo ardor nos pulmões, provocados pela respiração entrecortada, ela teria certeza de que estava morta. Morta por dentro e por fora. Uma batida na porta lhe fez estremecer; A voz masculina do outro lado lhe perguntava se estava bem. Pedia desculpas. Pedia para conversar. Seu coração acelerado bombeava sangue rapidamente pelo corpo frágil, provocando ainda mais dor. Dor física e mental. Ela voltou para a cama e cobriu-se até a cabeça, rezando para Deus ou qualquer um que pudesse ouvir. "Queria estar morta", foi seu último pensamento antes da porta ser arrombada com força. 

sábado, 2 de maio de 2015

Cama de gato

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Era só mais uma noite comum. Buteco, cerveja, alguns bons amigos e qualquer música engraçada que pudessem cantar junto. Seria comum se não fosse Alice. Seria comum se não fosse Marcelo. De vez em nunca a vida se encarrega de fazer cama de gato com as linhas do destino e às vezes, só às vezes, pessoas erradas se encontram e dão certo.

Alice gostava do jeito descontraído e meigo de Marcelo. De quem observa demais e sabia tudo sobre ela, antes mesmo dela conseguir reunir coragem para contar. Gostava dos cabelos cacheados, do olhar brilhante e do sorriso de quem estava sempre pensando em aprontar algo. Era fascinada pelo tato e empatia que ele conseguia ter com os outros, pela capacidade do rapaz de fazer o bem sem olhar a quem. Gostava dos carinhos e dos abraços repentinos e, por mais que não soubesse demonstrar tanto afeto, ela retribuía sem pensar duas vezes.

Marcelo era apaixonado pelo espírito livre e desapegado de Alice. De como ela era ácida e sarcástica na medida certa. Gostava do cheiro que impregnava as roupas sempre escuras da moça, quase como se aquilo fosse sua marca registrada. Sabia que por trás de toda aquela fachada durona existia alguém muito mais doce e insegura, pedindo todo o cuidado do mundo só pra ela. Achava engraçada aquela mania de grandeza e tomou a liberdade de enaltecer ainda mais as inúmeras qualidades dela. Gostava daquela cumplicidade que existia entre eles, das risadas que dava daquelas piadas de humor negro, do sorriso aberto que recebia sempre que comentava como ela estava bonita.

Seria uma noite comum se Alice não tivesse deixado ele entrar. Seria uma noite comum se Marcelo não tivesse sido intrusivo. Eles eram assim; Uma mistura que tinha tudo para ser ruim, mas era boa. Era fácil. Era simples. Era muito boa. 

sábado, 18 de abril de 2015

Inferno Astral

https://www.youtube.com/watch?v=CVUOTzoVeZA
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Eu acho que eu sufoco as pessoas. O tempo todo. E eu acho que estou começando a me sufocar por pensar tanto nisso. Esse é o problema de ser tão intensa; Se eu sofro, eu fico em carne viva. Se eu me sinto feliz, eu irradio. Se eu gosto, eu amo. É cansativo. Engraçado né? Cansar de ser você mesmo e não poder fazer nada sobre, afinal, como é que se foge de quem se é? E antes fosse só isso. Eu também tinha que ser absurdamente insegura com tudo o que eu faço. Eu também tinha que ter baixa autoestima. Eu também tinha que ser extremamente aberta pro mundo. Como é que mistura tudo isso numa pessoa só, Deus? Como é que eu lido com isso? Não sei ficar calada, não sei falar baixo, não sei ser discreta, não sei não me ofender com pequenas coisas, não sei conversar olhando no olho, não sei... Acho que eu tenho tanto medo de não ser aceita, de ficar sozinha, que eu acabo me desdobrando em mil pedaços pra agradar todo mundo. Eu acabo me importando com o que dizem e desdizem de mim.

Eu queria ter um botão de desligar. Um modo soneca de mim mesma. Onde eu simplesmente paro de sentir tudo por um tempo e faço as coisas no automático. Onde eu paro de pensar como as pessoas me veem todos os dias. Onde eu paro de achar problemas em tudo o que eu faço, digo, penso, sou. Fico imaginando que por trás de todo elogio que eu faço, existe um "me enxerga também". Por trás de cada abraço que eu dou, tem um "cuida de mim, por favor". Não sou uma pessoa nada difícil de se lidar; Qualquer atenção e reconhecimento automaticamente me desarmam e me fazem desmanchar. Acho que eu já estou tão puída que agradeço quando alguém me tira do guarda-roupa e me leva pra dar uma voltinha. Acho que já me conformei tanto com a vida que aprendi a ser feliz com a felicidade dos outros em vez de buscar a minha própria. Acho que eu tento sempre ser uma estrela, mas acabo sendo um cometa. 

Ser estrela, ter luz própria, ser memorável, presente, quente... Ser cometa, ser passageiro, ser sozinho, frio. Começo a pensar que tudo o que acho que sou na verdade é quem eu queria ser. Começo a sentir a solidão chegando, pouco a pouco. Eu abro a porta, faço sala, sirvo um cafézinho e ela vai ficando, vai ficando, vai ficando. E eu vou sumindo cada vez mais, dentro de mim mesma. Afundando em todos esses pensamentos que escaparam da porta trancada no fundo da minha cabeça, sendo ameçada pelos meus próprios monstros. Falta muito para chegar naquela parte do filme em que aparece alguém que salva os inocentes e coloca tudo no lugar? E como faz quando o protagonista percebe que é inocente, herói e vilão ao mesmo tempo? O herói mata o vilão e salva o inocente. O herói mata a si mesmo e leva junto o vilão e o inocente. O herói vive junto com o vilão e o inocente. O herói protege o inocente do vilão. Esse filme já tem quase vinte anos e no momento os três brigam e eu assisto. Assisto e sinto tudo pegar fogo dentro de mim. Com essa crise de água talvez demore pra eu conseguir me apagar. Me desapegar. 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Eu comigo mesma


Olhe, não fique assim não, vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que você acha que eu não sei o que estou falando, mas eu sei. Eu sei que parece que você não vai aguentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Parece que você vai se desmanchar em lágrimas, mas não vai. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo, porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. Parece que nada vai mudar e que todos te traíram, mas repare com mais atenção, alguém ainda olha por você. Eu sei que parece ruim, mas vai melhorar. No final tudo fica bem. Você pode estar machucado agora, mas no futuro será só uma cicatriz, daquelas que você olha, se lembra da experiência e percebe o quanto teve sorte, que pessoas passam por coisas piores todos os dias. Não sofra em excesso e não torne as coisas mais difíceis do que realmente são. Dor é assim mesmo, arde, depois passa. Que bom. Aliás, a vida é assim: arde, depois passa. Que pena. A gente acha que não vai agüentar, mas agüenta

segunda-feira, 30 de março de 2015

Vida que segue

Eu ando por aí
contando as horas,
contando os passos,
contando histórias.

Eu ando por aí
colecionando cores
colecionando sorrisos,
colecionando amores.

Eu ando por aí
sentindo tudo,
sentindo muito,
sentindo mudo.

Eu ando por aí
fingindo estar,
fingindo bem,
fingindo sarar.

Eu ando por aí
tentando,
caminhando,
desmoronando.

domingo, 29 de março de 2015

Era tudo vermelho


Existe uma garota. Que atravessa a minha rua todos os dias. Ela desfila em toda a sua elegância vermelha, com seus pés pequenos e apressados, sempre tão focados em chegar em algum lugar. Algum lugar desconhecido até pra ela. Ela veste o coração debaixo de vários moletons quando o clima é ameno, torcendo para que ninguém veja o quão grande ele é. Mas eu vejo. Ela resmunga sozinha sobre aleatoriedades da vida de vez em quando, esperando que ninguém esteja prestando atenção. Mas eu presto. Apenas querendo compartilhar todo aquele mundo abstrato, escondido dentro daquela mente brilhante. Ela fala sobre poesia e arte como se fosse gente grande, gente velha, mas quando ri... Ah, quando ela ri é como se tirasse dez anos das costas. Tem ar de independência, de bem resolvida, mas eu sei que tudo o que ela quer é alguém ao seu lado. Alguém que segure aquela mão pequena e caminhe pelas linhas tortas da vida. Alguém pra tomar um café numa tarde de sexta, que não se importe em ouvir suas loucuras, em rir de si mesmo, que goste do humor ácido e inteligente que ela tanto se orgulha. Ela mancha a borda da xícara de vermelho, a cor da paixão. Da paixão que ela tem por tudo o que faz. Da paixão que coloca em tudo o que toca. Cor do amor que guarda para si ou despeja nas páginas de qualquer caderno. Do amor que ela dá e não recebe em troca. Mas tá tudo bem. É o que eu digo para mim mesmo todas as vezes que a assisto passar pela minha rua. Eu diria para ela também, mas ela sabe. Ela tem cara de que sempre sabe das coisas. Ela sabe que um dia vai parar e me perguntar o que eu tanto olho. Ela sabe que vai bater na minha porta e eu vou estar com café fresco esperando por ela e por todos os seus sonhos escondidos no bolso. Ela sabe, ela sempre sabe.

sexta-feira, 13 de março de 2015

9 de março de 2015


Passei bastante tempo tentando absorver e entender o porquê desse dia ter mexido tanto comigo. Se cheguei em algum lugar? Não. Quem sabe no fim dessas linhas eu compreenda. Nenhuma dor de garganta se compara à minha agonia em me ver sozinha. Admito; Solidão é algo que eu nunca me senti confortável em vestir. É aquele meu short apertado na cintura que só uso quando não tem mais roupa limpa e me faz andar toda quadrada. Todavia, na lavanderia da minha vida faltava um tempo bom pra secar meus vestidos favoritos. Passei alguns meses tentando achar um lugar ao sol onde eu pudesse me sentir feliz (afinal, quem não gosta de roupas secas e limpas?) mas a época de chuva em Belo Horizonte estava se alongando demais. Às vezes aparecia uma luz entre nuvens pra me deixar um pouco mais aliviada, porém todo final de tarde era escuro, quase tanto quando o meu café. Não lembro quando desisti de estender roupas no varal, só me recordo do cesto que ficava cada vez mais cheio. Cheio de coisas que precisavam ser compartilhadas. Recordo de uma certa conversa com uma budista que, voluntariamente, quis examinar meus chakras: "Seu canal comunicativo é muito sensível, você tem necessidade de falar as coisas", ela disse. "Dor de garganta é um sinal que seu canal tá desequilibrado". Na época não fez muito sentido e não acreditei em nada daquilo, mas quando cheguei em casa hoje não sentia mais dor e engolia com facilidade. Entretanto o meu maior espanto foi encontrar finalmente um cesto de roupas secas no meu quarto.

Foi um belo dia de sol, mas tudo o que eu precisava mesmo era de um chá das cinco.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Distorção

A noite já caía e ela ainda estava sentada no mesmo lugar. Num pequeno café, numa rua movimentada, num bairro que era muito distante daquele em que atualmente residia. Já era a terceira xícara de cappuccino que tomava desde que tinha chegado ali e os garçons já não lhe perguntavam mais se ela aguardava alguém. Sabiam quem a moça estava esperando, aliás, quem ela esperava todos os dias. Do outro lado da pista jazia uma casinha pequena, cheia de memórias mortas, porém longe de estarem enterradas. A observadora sentava-se ali no mesmo horário, durante todos os dias da semana e remoía aquilo que um dia fora amor dentro do seu peito. Seus olhos cansados e doloridos percorriam toda a fachada da casa que ela havia ajudado a construir, que eles tinham construído juntos. Ainda era vívido em sua memória o dia em que, enquanto ela pintava as paredes com um grande rolo e ria por não ser alta o suficiente para alcançar as partes perto do telhado, ele consertava a cerca que já estava há muito desgastada pelo tempo. As lembranças daqueles dias felizes só faziam com que o emaranhado de sentimentos dentro dela se misturasse ainda mais. Já havia lido em alguns artigos de psicólogos que certos traumas eram tão impactantes que as pessoas envolvidas acabam inventando seu próprio mundo para conseguir lidar com tudo, mas achava que era tão ridiculamente improvável... “Como alguém confunde realidade com imaginação ao ponto de não conseguir discernir um do outro?”, era o que se perguntava, sempre de forma desdenhosa. Agora, sentada ali, vislumbrando lapsos do seu passado, a moça começava a acreditar no que todos aqueles artigos falavam. Não conseguia mais entender como seu amor, que era terra fértil para plantio das bases sólidas do casamento, tinha subitamente se transformado naquilo. “Naquilo”, porque não sabia como nomear o sentimento doentio que lhe fazia observar a vida do ex-marido diariamente e torcer para que ele abandonasse a atual noiva, tão cruelmente como fizera consigo. O sentimento que, por pior que fosse, era melhor do que aceitar a verdade: Ela perdera tudo e ninguém além dela mesma era culpada. Por mais que gostasse de dizer de boa cheia que o ex-marido havia lhe traído, a mulher sabia que ele tinha sido honesto. Por mais que buscasse toda e qualquer oportunidade de difamá-lo, uma pontinha dentro de si sabia que ela estava se enganando. Todavia, a realidade era algo que não se permitia viver. 
Sua rotina era a mesma: Trabalhava apenas para pagar as contas, pois perdera todo o prazer em escrever sua coluna diária no jornal da cidade. Comia qualquer coisa, porém por necessidade e não por vontade. Por fim, batia seu ponto naquele mesmo café e esperava até que o casal protagonista da sua vida chegasse em casa, naquela que um dia fora sua. Quando isso acontecia, a moça simplesmente se levantava e pegava um ônibus para seu apartamento apertado no bairro periférico da cidade. Enganados aqueles que pensavam que não existia a vontade de fazer algo dentro dela; Já havia feito muito, tentando recuperar sua vida antiga, coisa que resultou em um mandado judicial. Ela não podia chegar perto deles, ou seria presa. E amor à sua pseudoliberdade era algo que ainda lhe restava. Chegou em casa naquela noite e pôs-se a admirar o estado que sua vida estava. Morava muito mal. Comia muito mal. Diversão naquela altura era uma palavra completamente desconhecida. Andou até o pequeno espelho manchado que ficava no banheiro e deu uma olhada em si mesma.
Os cabelos brancos precisavam ser pintados com urgência, a pele estava flácida, pois havia perdido muito peso num curto período de tempo. Os seus olhos, antes brilhantes, estavam opacos e emoldurados por olheiras fundas. Tocou as rugas precoces na sua testa e suas unhas brutalmente roídas chamaram sua atenção. A dor incomodava no início, porém não sentia mais nada e nem notava quando as roía. Despiu-se e entrou no chuveiro gelado. O contato da água com a pele quente não lhe provocou arrepios; Era difícil ter qualquer estímulo daquele tipo já que se considerava morta por dentro. Limpou-se mecanicamente, enxugou-se, vestiu a roupa menos suja que tinha no chão do seu quarto e deitou-se. A torrente de pensamentos e lembranças de sempre nunca a deixavam em paz e eram raras as noites que realmente conseguia dormir. No entanto, naquela em especial, a mulher chorou. Faziam dias desde a última vez que isso acontecera. Chorou violentamente, sendo sufocada pelas lágrimas pesadas e salgadas que trasbordavam da sua alma retorcida e doída. A foto na sua cabeceira mostrava uma versão sua de meses atrás. Sorridente, feliz, brincalhona. O seu eu atual tinha se perdido completamente nos caminhos tortuosos da vida e talvez, só talvez, aquele último choro mostrava que ela finalmente tinha enxergado o monstro que havia se tornado. De fato, a linha entre amor e ódio é muito tênue e às vezes o fim de linha era a insanidade.