domingo, 31 de maio de 2015

Código Morse

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Ali no alto ela conseguia respirar. Inalava o vento frio com tanto prazer que nem se importava com o ardor que ele provocava nos pulmões. Cruzou os braços sobre o peito e olhou para baixo. Quinze andares. Algumas formigas caminhavam rapidamente pela fina rua, apressadas para chegar em algum lugar. Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas grossas e um riso debochado escapou da boca cor de uva. As pessoas eram treinadas para continuar caminhando, por mais que o destino final fosse incerto. Ela mesma se considerava uma andarilha nata; daquelas que sempre tem uma mochila nas costas e os pés prontos para pegar o próximo desvio. A vida previsível era necessária, mas nada era mais emocionante do que as bifurcações. 

Seu coração angustiado batia acelerado no peito, como um passáro engaiolado procurando a saída. O que estaria lhe esperando? Milhões de pessoas naquela pequena cidade grande, onde cada esquina virada criava incontáveis possibilidades. Abriu os braços o máximo que conseguia e ficou na ponta dos pés. Fechou os olhos e ouviu a canção do silêncio. Sentia frio na nuca exposta. Sentia o corpo lento, como se estivesse imerso em água. Podia sentir o palpitar do sangue fluindo nas pontas dos dedos. Era um sinal. Estava viva. Isso era o que importava. 

Abriu os olhos, voltando para a realidade e desceu do parapeito. Deu uma última olhada no horizonte antes de descer as escadas de incêndio. As luzes da cidade grande piscavam em código morse. "Seja livre", elas diziam. "O mundo é muito pequeno pra sua vontade de viver".

segunda-feira, 25 de maio de 2015

No silêncio da madrugada

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As luzes da cidade já começavam a se apagar quando Clara saiu do ônibus. Os cabelos lisos e pesados esvoaçavam com o vento frio, deixando o rosto quase infantil à mostra. Quase porque havia algo naquele olhar. Olhar de quem sabia o que queria, de quem carregava muita coisa no coração. Os braços pequenos cobriam o corpo enquanto andava, se escondendo do frio e e se reservando do mundo que lhe rodeava. Talvez se andasse de braços abertos, as pessoas lhe dessem mais crédito, lhe levassem à sério. Mas a que preço? Avistou o grupo de amigos reúnidos e respirou fundo, se aprontando para as mesmas exclamações de sempre. "Nossa, Clara! Não sabia que você era assim...", a frase já estava carimbada por todo o seu corpo, como folhas de um passaporte. Seu destino era sempre o mesmo; uma viagem para o fundo da sua mente, tentando entender o porquê da sua imagem ter se construído de forma tão rasa. O sorriso nos lábios pintados de roxo mascarava a falsidade daquilo tudo. Falsos julgamentos que Clara engolia sem dizer muita coisa. Ouviu silenciosamente as conversas, tentando absorver tudo o que conseguia, mas se pronunciando de forma muito pontual. Se poupava dos comentários chatos sobre sua ironia desmedida, suas roupas curtas, seu batom escuro... Era até divertido rir consigo mesma daquelas reações, mas sentia falta de alguém que de fato lhe enxergasse. Seus pés formigavam enquanto esperava do lado de fora. Seu coração ansiava pelo que existia atrás daquela porta dupla: Um mundo que era só seu, pronto para ser dançado. A música alta veio como entorpecente, daqueles que batiam tão forte que faziam esquecer até o próprio nome. Ela bebia a batida e inalava o ritmo, sentindo todas as suas amarras se soltarem, uma por uma. Não existia opiniões alheias; não existia fofura e bom senso; não existia a falsidade. Ali só existia Clara, na sua forma mais pura. Uma droga a ser consumida sem nenhuma moderação.

domingo, 24 de maio de 2015

Sobre o Mar que existe entre esse Elo.


Eu nem vi, Alice. Quando você chegou de mansinho e fez da minha vida um ponto de luz e caos. Com seus mil sentimentos não resolvidos disfarçados de egocentrismos. Com suas piadas negras e suas risadas fora de hora. Com seu gosto musical no mínimo diferente e sua frustração por não saber cantar. Com sua vontade de ser útil. Com sua máscara de ser fútil. Com seu jeito sutil de ser ninguém mais do que você mesma.

Eu nem vi, Alice. Quando você simplesmente parou de ser acaso e se tornou rotina. Quando você deixou de ser sozinha e passou a ser preocupação. Quando você deixou de ser você e se tornou eu. Quando você deixou de ser eu e se tornou eles. 

Eu nem vi, Alice. O quanto seu cabelo cresceu e suas barreiras diminuíram. O quanto você ficou mais bonita aos olhos dos outros. O quanto eu me assustei com a rapidez das coisas. O quanto eu me deixei passear por outros cantos. O quanto você cresceu nesse meio tempo. O quanto você se tornou aventura. O quanto eu virei monotonia.

Nem as estrelas cadentes e os signos do zodíaco poderiam prever isso, então eu nem vi, Alice. 
Eu nem vi Alice. Eu via Alice. 

sábado, 16 de maio de 2015

TOC: Te Observo com Carinho

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O som das chaves sendo colocadas na mesa quebrou o silêncio do apartamento. Já passava das oito mas aquilo era considerado cedo para ela. Ouvi o som agudo dos tênis no assoalho e fiz o trajeto até o quarto do lado mentalmente. Já tinha visto aquela cena tantas vezes que não precisava estar lá para saber que ela estava colocando a bolsa na cadeira de sempre, tinha passado a mão pela roupa de cama para tirar qualquer amassado sobrevivente e pendurado o moletom impecavelmente branco no cabideiro. As chaves estavam no criado mudo perto da porta, do lado dos controles da televisão e da sky, nessa ordem. Os bancos da mesa estavam todos perfeitamente alinhados e os quadros na parede marrom desconheciam o que era estarem tortos. O barulho de água caindo denunciava que ela já tinha entrado no banho e era minha deixa para sair do meu canto. 

Caminhei silenciosamente até a cozinha e, enquanto minhas mãos trabalhavam, eu pensava no tanto que aquele lugar era cheio dela. Os livros na estante, organizados por escala de cor, denunciavam todo o seu amor por design. O quadrinho negro na porta da geladeira tinha uma checklist perfeitamente desenhada do que faltava comprar. O capacho da porta dizia "enjoy" e o resto da casa completava educamente, "please". Doses iguais de organização, aconchego e estilo. O conhecido arranhar da vitrola no vinil me despertou dos devaneios e segui de volta para o corredor. 

A porta estava aberta, como se soubesse que eu chegaria. Parei na ali, sem falar nada e a observei, compenetrada com alguma coisa na tela do notebook. Ela costumava usar fones de ouvido mas desde que tínhamos achado aquela vitrola no centro, preferia tirar poeira de alguns discos antigos que comprava eventualmente. Talvez ela só estivesse fingindo não me ver ali, talvez estivesse ocupada demais para me falar qualquer coisa; não me importava. Entrei calmamente, coloquei a caneca de chocolate quente e o prato com um sanduíche na mesa, dando-lhe um beijo na cabeça. 

As olheiras lhe davam um aspecto abatido, cutucando meu instinto de cuidado, porém eu sabia que aquilo era só reflexo de todo o seu esforço. Ela era daquelas pessoas que davam o melhor de si sempre, perfeccionista até onde não podia mais, extramente metódica... Para muita gente, defeitos. Aos meus olhos, qualidades. Passei as mãos pelos cabelos curtos uma última vez e virei as costas. Ela não era de muitas palavras, quase nunca falava sobre si. Sorte dela que eu sempre observei tudo com muita atenção. Eu não conhecia nem um terço daquela mente brilhante, mas sabia muito mais do que ela imaginava. Que continuasse assim.

sábado, 9 de maio de 2015

180

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Abriu os olhos com certo esforço. A pouca luminosidade no quarto lhe agradava; Amenizava o ardor febril das vistas. A garganta lhe machucava até a alma, se é que havia resquício de uma confinada naquele corpo. Moveu-se levemente, fazendo menção de levantar e sentiu os reflexos da noite anterior. A dor veio à tona sem ter dó nem pierdade, percorrendo seu tronco e irradiando pelos membros. Sua cabeça latejava, completando o quadro deplorável em que se encontrava. Não sabia como tinha conseguido chegar em casa, mas agradeceu silenciosamente por ter acordado na própria cama. Lutou contra sua própria vontade de permanecer imóvel e se levantou. Precisava examinar os estragos. O espelho mostrava uma figura alta e esguia, até bonita se não fossem os hamatomas nos braços e pernas. A camisa escondia uma mancha enorme nas costelas, que parecia um bom motivo para uma ida ao hospital. O rosto antes belo, estava encovado. Os olhos vazios eram emoldurados pelas olheiras fundas. Se não fosse pelo ardor nos pulmões, provocados pela respiração entrecortada, ela teria certeza de que estava morta. Morta por dentro e por fora. Uma batida na porta lhe fez estremecer; A voz masculina do outro lado lhe perguntava se estava bem. Pedia desculpas. Pedia para conversar. Seu coração acelerado bombeava sangue rapidamente pelo corpo frágil, provocando ainda mais dor. Dor física e mental. Ela voltou para a cama e cobriu-se até a cabeça, rezando para Deus ou qualquer um que pudesse ouvir. "Queria estar morta", foi seu último pensamento antes da porta ser arrombada com força. 

sábado, 2 de maio de 2015

Cama de gato

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Era só mais uma noite comum. Buteco, cerveja, alguns bons amigos e qualquer música engraçada que pudessem cantar junto. Seria comum se não fosse Alice. Seria comum se não fosse Marcelo. De vez em nunca a vida se encarrega de fazer cama de gato com as linhas do destino e às vezes, só às vezes, pessoas erradas se encontram e dão certo.

Alice gostava do jeito descontraído e meigo de Marcelo. De quem observa demais e sabia tudo sobre ela, antes mesmo dela conseguir reunir coragem para contar. Gostava dos cabelos cacheados, do olhar brilhante e do sorriso de quem estava sempre pensando em aprontar algo. Era fascinada pelo tato e empatia que ele conseguia ter com os outros, pela capacidade do rapaz de fazer o bem sem olhar a quem. Gostava dos carinhos e dos abraços repentinos e, por mais que não soubesse demonstrar tanto afeto, ela retribuía sem pensar duas vezes.

Marcelo era apaixonado pelo espírito livre e desapegado de Alice. De como ela era ácida e sarcástica na medida certa. Gostava do cheiro que impregnava as roupas sempre escuras da moça, quase como se aquilo fosse sua marca registrada. Sabia que por trás de toda aquela fachada durona existia alguém muito mais doce e insegura, pedindo todo o cuidado do mundo só pra ela. Achava engraçada aquela mania de grandeza e tomou a liberdade de enaltecer ainda mais as inúmeras qualidades dela. Gostava daquela cumplicidade que existia entre eles, das risadas que dava daquelas piadas de humor negro, do sorriso aberto que recebia sempre que comentava como ela estava bonita.

Seria uma noite comum se Alice não tivesse deixado ele entrar. Seria uma noite comum se Marcelo não tivesse sido intrusivo. Eles eram assim; Uma mistura que tinha tudo para ser ruim, mas era boa. Era fácil. Era simples. Era muito boa.