sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Distorção

A noite já caía e ela ainda estava sentada no mesmo lugar. Num pequeno café, numa rua movimentada, num bairro que era muito distante daquele em que atualmente residia. Já era a terceira xícara de cappuccino que tomava desde que tinha chegado ali e os garçons já não lhe perguntavam mais se ela aguardava alguém. Sabiam quem a moça estava esperando, aliás, quem ela esperava todos os dias. Do outro lado da pista jazia uma casinha pequena, cheia de memórias mortas, porém longe de estarem enterradas. A observadora sentava-se ali no mesmo horário, durante todos os dias da semana e remoía aquilo que um dia fora amor dentro do seu peito. Seus olhos cansados e doloridos percorriam toda a fachada da casa que ela havia ajudado a construir, que eles tinham construído juntos. Ainda era vívido em sua memória o dia em que, enquanto ela pintava as paredes com um grande rolo e ria por não ser alta o suficiente para alcançar as partes perto do telhado, ele consertava a cerca que já estava há muito desgastada pelo tempo. As lembranças daqueles dias felizes só faziam com que o emaranhado de sentimentos dentro dela se misturasse ainda mais. Já havia lido em alguns artigos de psicólogos que certos traumas eram tão impactantes que as pessoas envolvidas acabam inventando seu próprio mundo para conseguir lidar com tudo, mas achava que era tão ridiculamente improvável... “Como alguém confunde realidade com imaginação ao ponto de não conseguir discernir um do outro?”, era o que se perguntava, sempre de forma desdenhosa. Agora, sentada ali, vislumbrando lapsos do seu passado, a moça começava a acreditar no que todos aqueles artigos falavam. Não conseguia mais entender como seu amor, que era terra fértil para plantio das bases sólidas do casamento, tinha subitamente se transformado naquilo. “Naquilo”, porque não sabia como nomear o sentimento doentio que lhe fazia observar a vida do ex-marido diariamente e torcer para que ele abandonasse a atual noiva, tão cruelmente como fizera consigo. O sentimento que, por pior que fosse, era melhor do que aceitar a verdade: Ela perdera tudo e ninguém além dela mesma era culpada. Por mais que gostasse de dizer de boa cheia que o ex-marido havia lhe traído, a mulher sabia que ele tinha sido honesto. Por mais que buscasse toda e qualquer oportunidade de difamá-lo, uma pontinha dentro de si sabia que ela estava se enganando. Todavia, a realidade era algo que não se permitia viver. 
Sua rotina era a mesma: Trabalhava apenas para pagar as contas, pois perdera todo o prazer em escrever sua coluna diária no jornal da cidade. Comia qualquer coisa, porém por necessidade e não por vontade. Por fim, batia seu ponto naquele mesmo café e esperava até que o casal protagonista da sua vida chegasse em casa, naquela que um dia fora sua. Quando isso acontecia, a moça simplesmente se levantava e pegava um ônibus para seu apartamento apertado no bairro periférico da cidade. Enganados aqueles que pensavam que não existia a vontade de fazer algo dentro dela; Já havia feito muito, tentando recuperar sua vida antiga, coisa que resultou em um mandado judicial. Ela não podia chegar perto deles, ou seria presa. E amor à sua pseudoliberdade era algo que ainda lhe restava. Chegou em casa naquela noite e pôs-se a admirar o estado que sua vida estava. Morava muito mal. Comia muito mal. Diversão naquela altura era uma palavra completamente desconhecida. Andou até o pequeno espelho manchado que ficava no banheiro e deu uma olhada em si mesma.
Os cabelos brancos precisavam ser pintados com urgência, a pele estava flácida, pois havia perdido muito peso num curto período de tempo. Os seus olhos, antes brilhantes, estavam opacos e emoldurados por olheiras fundas. Tocou as rugas precoces na sua testa e suas unhas brutalmente roídas chamaram sua atenção. A dor incomodava no início, porém não sentia mais nada e nem notava quando as roía. Despiu-se e entrou no chuveiro gelado. O contato da água com a pele quente não lhe provocou arrepios; Era difícil ter qualquer estímulo daquele tipo já que se considerava morta por dentro. Limpou-se mecanicamente, enxugou-se, vestiu a roupa menos suja que tinha no chão do seu quarto e deitou-se. A torrente de pensamentos e lembranças de sempre nunca a deixavam em paz e eram raras as noites que realmente conseguia dormir. No entanto, naquela em especial, a mulher chorou. Faziam dias desde a última vez que isso acontecera. Chorou violentamente, sendo sufocada pelas lágrimas pesadas e salgadas que trasbordavam da sua alma retorcida e doída. A foto na sua cabeceira mostrava uma versão sua de meses atrás. Sorridente, feliz, brincalhona. O seu eu atual tinha se perdido completamente nos caminhos tortuosos da vida e talvez, só talvez, aquele último choro mostrava que ela finalmente tinha enxergado o monstro que havia se tornado. De fato, a linha entre amor e ódio é muito tênue e às vezes o fim de linha era a insanidade.